Shipping: ontem, hoje, amanhã

Um saudosista nostálgico poderia olhar para trás e lembrar de uma época do século passado em que os navios de carga geral dominavam o mercado, cada país com suas frotas de bandeira e tripulantes nacionais. Uma época em que os fretes eram “impostos” pelas famosas conferências de fretes, verdadeiros carteis, aceitos ou tolerados pelos governos de então.

Pois bem, ainda no final dos anos 90 e início de 2000 os navios de carga geral foram majoritariamente substituídos pelos navios full container, as conferências de fretes foram extintas e os fretes começaram a comportar-se pela oferta e demanda, como qualquer commodity!

Após a crise de 2008/2009, nova transformação é observada quando, por excesso de oferta, e consequente derrubada brutal dos fretes, armadores passaram um prolongado período de dificuldades financeiras, que culminou na falência da Hanjin, e muitos tiveram de recorrer a fusões e incorporações para sobreviver. Paralelamente, entravam em cena os grandes navios, em busca de economia de escala, que por sua vez levaram às grandes alianças (2M; The Ocean Alliance e The Alliance).

Então vem a pandemia, que resulta em um aumento gigantesco de demanda, falta capacidade, os portos ficam congestionados e os fretes atingem níveis nunca dantes verificados. Ao final da pandemia os armadores, com seus cofres cheios, partiram para encomendas de novos navios embora atualmente já veem seus resultados financeiros sofrer forte revés.

De acordo com publicação da Alphaliner, existem hoje cerca de 5.781 navios full container em atividade no mundo, com uma capacidade de 26,6 milhões de TEU, dos quais apenas 1,20% estão inativos, por algum motivo. Por outro lado, observamos uma carteira de pedidos de novos navios na casa de 7,5 milhões de TEU em capacidade, que corresponde a 28,5% da frota atual.

Apesar de um número considerável de navios em atividade já ter atingido sua vida útil, que é entre 20/25 anos, os desmontes de navios têm estado num ritmo muito lento (2022 foram demolidos apenas 8 navios com 18 mil TEU e em 2023, até maio, foram sucateados 33 navios com 57 mil TEU).

E foi nesse contexto que, em recente podcast promovido pela SOLVE — “Papo de Shipping” —, o ex-CEO da Hamburg Sud/Maersk e atual presidente do Conselho da Log In, Sr. Julian Thomas, perguntado qual seria a relutância dos armadores em descartar os velhos navios, em vista de tantos novos navios entrando em operação, disse: “Ninguém quer ser pego de surpresa, como na pandemia, com uma súbita recuperação do mercado e não ter capacidade para atender, mas eventualmente esses navios serão descartados”.

A questão então coloca-se como poderão os armadores com tal tamanho de oferta assegurar que os fretes não venham novamente voltar a níveis insustentáveis a exemplo de 2008/2009? É ainda o Sr. Julian Thomas que nos responde:

1. Com as severas exigências da IMO quanto à eficiência energética que exige que os navios reduzam suas emissões de CO2, eles precisam adotar uma política de redução de velocidade e, para que possam manter seus serviços semanais, têm de acrescentar mais navios no “loop”, absorvendo parte do excesso de demanda.

2. Eventualmente, os navios mais velhos e ineficientes, sob um ponto de vista energético, terão de ser sucateados, a despeito dos temores referidos anteriormente.

Olhando para um horizonte de 5 a 10 anos para frente, que transformações se pode esperar do shipping?

Indiscutivelmente a descarbonização do setor é o fato mais relevante que ocorrerá e, na verdade, já está ocorrendo, em um ritmo surpreendente. Basta acompanhar o noticiário especializado durante apenas uma semana e é impressionante o volume de notícias dando conta de iniciativas em buscar alcançar níveis de redução de emissões de navios (a IMO tem como meta atual que se reduzam em 40% as emissões até 2030 e 70% até 2050, comparados a 2008, que poderá aumentar como resultado da 80ª sessão do “Marine Environment Protection Committee – MEPC, que está em curso nesse momento em Londres ).

Os armadores entenderam a pressão da sociedade e nos últimos dois ou três anos têm demonstrado uma extraordinária proatividade, sem necessariamente aguardar pelos órgãos reguladores. Por todo o lado, observam-se pesquisas de novos combustíveis verdes, novos motores, novos modelos de navios bicombustíveis, opções pelo uso auxiliar do vento etc.

Existem, porém, três questões fundamentais nesse panorama, que certamente estão tirando o sono dos donos de navios:

1. Qual combustível adotar? Estão na mesa desde a opção pela energia nuclear, passando pelo LNG e os combustíveis ditos verdes, como amônia e metanol. A energia nuclear, por incrível que pareça, é uma energia considerada limpa, mas certamente muito arriscada pelo perigo de vazamento de material radioativo; o LNG está sendo considerado como um combustível de transição, já que, embora mais limpo que o óleo combustível, ainda se trata de um combustível de origem fóssil; metanol pode ser uma boa opção, mas amônia seria o mais verde de todos, embora ainda tenha um problema que é seu alto grau de toxidade.

2. Quando se encomenda um navio ao estaleiro, é preciso levar em conta que esse navio terá uma vida útil de 20/25 anos, portanto há uma difícil decisão quanto ao tipo de combustível que esse navio irá utilizar.

3. Embora os armadores tenham se engajado com muita disposição nos projetos de transição energética, estão conscientes de que ela virá com um considerável aumento de custos, que inevitavelmente terão que ser repassados aos usuários. Para tanto será necessário um processo de conscientização e engajamento dos importadores e exportadores para aceitarem essa parcela de responsabilidade na redução das emissões. É verdade que os armadores sabem que as políticas de ESG, que mais e mais empresas assumem, deverão” jogar a favor” da aceitação desse aumento de custos.

Ainda na visão do Sr. Julian Thomas, a segunda grande mudança que assistiremos no setor é a aceleração da digitalização, que terá um impacto significativo no transporte marítimo de contêineres nos próximos anos.

E aqui estão algumas maneiras pelas quais a digitalização impacta e cada vez mais impactará o setor:

1. Automação de Processos: A digitalização permite a automação de várias tarefas e processos. Isso inclui a automação de documentação, faturamento, rastreamento e gerenciamento de contêineres. A automação reduz erros, aumenta a eficiência operacional e diminui os custos administrativos.

2. Visibilidade e Rastreamento em Tempo Real: A digitalização possibilita um melhor rastreamento e visibilidade das cargas em tempo real ao longo da cadeia de suprimentos. Tecnologias como Internet das Coisas (IoT), sensores e análise de dados permitem que os operadores monitorem os contêineres, rastreiem sua localização e condição, bem como recebam atualizações em tempo real. Isso melhora a segurança e a eficiência e permite uma melhor gestão do estoque.

3. Melhoria da Eficiência Operacional: A digitalização permite otimizar e melhorar a eficiência operacional em várias áreas, tais como planejamento de rotas mais precisas e eficientes, alocação otimizada de espaço no contêiner, gerenciamento de estoques e programação de embarques. Com maior visibilidade e dados em tempo real, as empresas podem tomar decisões mais embasadas e implementar melhorias em seus processos.

4. Maior Conectividade e Colaboração: A digitalização promove uma maior conectividade e colaboração entre os atores envolvidos no transporte marítimo de contêineres. Isso inclui empresas de navegação, portos, terminais, autoridades aduaneiras e prestadores de serviços logísticos. Através de plataformas digitais e compartilhamento de dados, esses atores podem colaborar mais efetivamente, compartilhar informações e coordenar operações para melhorar a eficiência e a transparência em toda a cadeia de suprimentos.

5. Uso de Tecnologias Emergentes: A digitalização também abrirá caminho para a adoção de tecnologias emergentes, como blockchain e inteligência artificial. O blockchain pode oferecer maior segurança e rastreabilidade nas transações e documentação, enquanto a inteligência artificial pode melhorar a previsibilidade e a eficiência nas operações de transporte marítimo de contêineres.

6. É importante ressaltar que a digitalização também apresenta desafios, como a segurança cibernética, a necessidade de padronização e interoperabilidade de sistemas e a gestão efetiva dos dados gerados. No entanto, a digitalização tem o potencial de transformar a indústria de transporte marítimo de contêineres, melhorando a eficiência, a visibilidade e a experiência geral dos clientes.

E o Brasil está pronto para essas mudanças?

Do ponto de vista da transição energética, somos um dos países em melhores condições de nos tornarmos fornecedores dos combustíveis verdes, com nossa disponibilidade de ventos (energia eólica), sol (energia solar), área agriculturável (biomassa) e água (energia hidroelétrica).

Sob a ótica da digitalização, o país está muito alinhado com as novas tecnologias e demonstramos muita facilidade em absorvê-las (vide o recente caso do PIX).

Mas e a nossa infraestrutura portuária para receber os novos e grandes navios que se anunciam nos próximo anos?

Os grandes operadores internacionais acreditam no aumento da demanda de cargas e se mostram dispostos a investir aqui. Evidência disso é que no último mês o Brasil recebeu a visita de altos dirigentes de operadoras globais de terminais, como APMT (grupo Maersk), TIL (grupo MSC) e DPW, todos afirmando sua disponibilidade em ampliar seus negócios aqui.

Mas para que esses investimentos aconteçam é necessário que o governo e as autoridades portuárias façam, com urgência, sua parte em termos de dragagens, ampliações de bacias de evolução e canais.

Infelizmente, o que temos visto são muitos discursos, viagens de estudos a outros países, promessas de investir recursos do orçamento (que não existem ou são escassos) e por consequência uma falta de planos realistas e consistentes. As transformações estão acontecendo em ritmo acelerado, o Brasil está na mira dos investidores, mas não há tempo a perder.

Robert Grantham

Robert Grantham é sócio da Solve Shipping Intelligence Specialists

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