ICMS-Importação: enquanto tem bambu, tem flecha

Por Leonardo Branco e Fábio Piovesan Bozza

É chegado o momento de focarmos no mais importante dos impostos estaduais (em arrecadação, pelo menos): o ICMS. Controvérsias não faltam e há questionamentos sobre todos os aspectos que cercam a relação tributária: material, temporal, espacial, quantitativo e subjetivo. Aliás, este é o imposto sobre o qual nossos tribunais superiores (STF e STJ) têm se debruçado com maior vigor, quando considerado o número de decisões proferidas. Ousando desbravar esse espinhoso tributo, pretendemos elucidar algumas das questões mais recentes e atuais, focando especialmente naquelas relacionadas à incidência na importação de bens e mercadorias.

A primeira questão a ser dirimida no ICMS-Importação diz respeito à sua hipótese de incidência, limitada pela própria previsão de cobrança do imposto nas operações internas (as exigências tributárias na importação, à exceção do II, são autorizadas apenas para viabilizar a equiparação do tratamento tributário do produto estrangeiro àquele ao qual é submetido o produto nacional).

Nesse viés, há de se destacar que a Constituição outorgou competência (artigo 155, II) para que os estados instituíssem imposto sobre “operações de circulação de mercadorias”, expressão cujo significado se extrai da combinação das definições das três palavras que a compõem (“operações”, “circulação” e “mercadorias”).

A combinação dos vocábulos, na interpretação pacificada pelas Cortes Superiores, permite a conclusão de que o horizonte de eventos da materialidade deste tributo recai sobre negócios jurídicos onerosos (“operação”) de transferência de propriedade (“circulação jurídica”) de bem móvel que possa ser legitimamente comercializado, possua valor mercantil e que esteja preordenado/destinado a essa prática de operações mercantis na acepção do alienante (“mercadorias”), como se extrai da leitura combinada dos precedentes quanto à impossibilidade de incidência do ICMS:

(a) na Saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato (Súmula STF nº 573);

(b) no mero deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte, ainda que localizados em estados distintos (ADC nº 49, Tema 1.099 da Repercussão Geral, Súmula STJ nº 166 e Resp nº 1.125.133/SP);

(c) nas entradas de mercadorias e bens originados de outros Estados para não contribuintes do imposto independentemente de quantidade, valor ou habitualidade para caracterizar ato comercial (ADI nº 4.565);

(d) na entrada temporária de mercadoria em território nacional mediante arrendamento mercantil sem opção de compra (Tema nº 297 da Repercussão Geral).

Ainda quanto à hipótese de incidência na importação, há uma exigência adicional: a cobrança só pode ocorrer caso a operação seja realizada com bens e produtos estrangeiros, considerando a limitação constitucional da possibilidade de cobrança destes tributos sobre bens e produtos nacionais ou nacionais, verificada na própria redação do artigo 153, inciso I, que trata da incidência do imposto de importação (que repercute, naturalmente, na cobrança do ICMS nessa modalidade). Essa questão gera debates quanto a bens que não podem ser legitimamente considerados como estrangeiros (v.g. obras artísticas e literárias) ou que juridicamente nunca deixaram a propriedade, apenas a posse, de pessoa brasileira (v.g. reingresso de bem em território nacional após a sua saída temporária).

O segundo debate diz respeito ao contribuinte. Em sua redação originaria, a CF/88 previa a instituição da cobrança do ICMS “sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço”, forma de tributação disciplinada pelos artigos 2º, §1º, inciso I, 4º, parágrafo único, inciso I  e 12, inciso IX  da Lei Complementar nº 87/96 em sua redação também original.

A despeito da clareza da limitação da norma constitucional sobre a possibilidade de cobrança somente de contribuintes habituais (especialmente em razão do emprego dos vocábulos “mercadoria” e “estabelecimento”), os estados tentaram cobrar o ICMS-Importação sobre qualquer operação de importação, conduta que veio a ser reconhecida como inconstitucional pelo STF, culminando na Súmula nº 660.

Em resposta à orientação do STF, sobreveio a Emenda Constitucional nº 33/2001, na qual foi alterada a redação do artigo 155, inciso II, § 2º, inciso IX, alínea “a”, para outorgar autorização em abstrato para a incidência do ICMS sobre a importação realizada “por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade”.

A nova autorização constitucional ainda não era suficiente para que os estados instituíssem efetivamente a cobrança do ICMS sobre essas operações, na medida em que ainda faltava a edição de Lei Complementar estabelecendo as normas gerais para tal cobrança (definindo o fato gerador, o momento da incidência, a base de cálculo, os contribuintes e a questão de eventual creditamento), completando assim o fluxo de positivação de qualquer exigência tributária, o que só foi feito com o advento da Lei Complementar nº 114/2002.

No entanto, alguns estados (o mais famoso é São Paulo) não aguardaram a edição de Lei Complementar estabelecendo a norma geral de tributação, e publicaram normas antes da LCp nº 114/02 para prever a cobrança do ICMS nas importações realizadas por não-contribuintes. Tal exigência foi questionada com êxito pelos contribuintes no Tema STF nº 171, no qual embora tenha sido reconhecida constitucionalidade em abstrato da cobrança do ICMS nas importações de não-contribuintes após a EC nº 33/2001, esta foi condicionada à modificação da legislação estadual ser posterior tanto à Emenda em questão quanto à Lei Complementar nº 114/2002.

São Paulo, no entanto, não se deu por vencido e continuou defendendo a validade da cobrança, agora sob o viés de que a cobrança seria inconstitucional apenas até a edição da LCp nº 114/2002 e, a partir daquele momento, poderia ser promovida. Essa posição foi rebatida pelos contribuintes que argumentavam a inexistência da figura da constitucionalização superveniente do direito brasileiro (em linha com a sabedoria popular de que “pau que nasce torto nunca se endireita”) e que o vício seria insanável. Foram vencidos em recente julgamento no Tema STF 1.094, que validou as Leis editadas antes da Lei Complementar nº 114/02, em julgamento muito criticado pela doutrina especializada.

Outro viés de discussão diz respeito à competência para sujeição ativa para cobrança do ICMS-Importação. A Lei Complementar nº 87/96 se limitou a laconicamente ponderar que quanto a bens importados do exterior: (a) local da operação para definição do sujeito ativo seria o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física ou o domicílio do adquirente quando não estabelecido; e (b) que o fato gerador ocorreria no desembaraço aduaneiro.

Foi a receita perfeita para o litígio. Inicialmente, a discussão era a defesa, em especial pelos Estados litorâneos, de que a Lei Complementar outorgava competência para o local onde ocorresse o desembaraço físico, o que só foi rechaçado pelo STF em 2009 por meio do Recurso Extraordinário nº 405.457, definindo que o ICMS é “devido ao estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário jurídico do bem, pouco importando se o desembaraço ocorreu por meio de ente federativo diverso”.

Só que esse julgado abriu margem para um segundo viés de discussão, relacionado à correta acepção do conceito de “destinatário jurídico”, que se arrastou por anos e gerou uma infinidade de autuações fiscais, em especial em razão da concessão unilateral de benefícios fiscais relacionados à importação de mercadorias (com destaque para Espírito Santo e Santa Catarina, contra os quais Estados destinatários, em especial São Paulo, declararam guerra aberta) que fez com que se proliferassem “planejamentos” em que o desembaraço ocorria em um Estado e logo na sequência a mercadoria era remetida para o Estado de destino real, tanto na modalidade de importação direta quanto encomenda.

Havia simulações, mas os estados que sentiram lesados não souberam pesar a mão. Passaram a descaracterizar com pouquíssimo critério a estrutura de diversas operações com mercadorias importadas, em especial as originadas desses estados que eram conhecidos por conceder benefícios fiscais generosos para a importação para ponderar que a circulação jurídica internacional ocorreu materialmente para seu território e que consequentemente seria competente para a cobrança do ICMS-Importação, com aplicação de penalidades.

Em muitas situações, inclusive, os estados efetivamente desconsideravam a competência privativa da União para legislar quanto a comércio exterior e negavam vigência à legislação que tratava da importação por conta e ordem de terceiros (Medida Provisória nº 2.158-35/2001) e da importação por encomenda (Lei nº 11.281/2006).

Após incontáveis autuações, o tema foi enfim definido com o julgamento do Tema nº 520 da Repercussão Geral, fixando a tese de que “o sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio”.

Após um período de breve instabilidade em função de alguma obscuridade no conteúdo do julgado, a matéria foi enfim pacificada com o julgamento de embargos de declaração, sendo possível extrair o sentido de que: (a) nas importações materialmente diretas ou indiretas na modalidade encomenda, o importador deve ser considerado como um destinatário jurídico do bem (já que sua etapa na cadeia de circulação da mercadoria é passível de consideração autônoma); ao passo que (b) nas importações indiretas na modalidade por conta e ordem, pelo fato do importador ser um mero intermediário, o destinatário jurídico deve ser o adquirente do bem.

Embora essa definição tenha dado contornos quase definitivos à controvérsia, ainda há alguma resistência de determinados fiscos estaduais, como já abordado em artigo de nossa lavra de 08/09/2022 (aqui),[1] voltado a analisar a resposta à consulta RC-Sefaz nº 25.335/2022 sobre importação por encomenda realizada por meio de importadora (Trading Company) com sede em Santa Catarina em que encomendante e exportador pertenciam ao mesmo grupo econômico, o que desnaturaria a operação por encomenda, devendo ser entendida como “por conta e ordem”, o que deslocaria a competência para São Paulo, criando, novamente, restrições desprovidas de amparo legal à aplicação de normas legais e o próprio entendimento firmado pelo STF.

Há ainda o caso em que o desembaraço ocorre em Estado distinto daquele em que situado o destinatário jurídico por questões logísticas e não é possível o emprego de alguma forma para assegurar a fidedignidade dessa destinação, como o trânsito aduaneiro (v.g. seja por questões de preço ou pela inexistência de recinto alfandegado adequado próximo ao destinatário) ou a modalidade de importação de conta e ordem (v.g. pela impossibilidade de uso no contexto de importações em regimes aduaneiros especiais como o Reidi).

Em teoria, não deveria existir óbice à aplicação do entendimento firmado pelo STF, já que a sede do importador que registra a declaração de importação continua a definir o sujeito ativo da obrigação. Na prática, contudo, não é difícil de visualizar que os estados que tanto sofreram com “planejamentos” no passado serão reticentes quanto à perda de arrecadação sem a garantia incontestável de que o bem sairá de seu território. Ou seja, é possível que o adquirente ainda seja posto em uma injusta e incompreensível encruzilhada entre a Secretaria da Fazenda Estadual e a Receita Federal.

O quarto viés de discussão diz respeito à sujeição quantitativa, especialmente com base na obrigação de tratamento nacional no Gatt, passível de desmembramento em duas vertentes à luz do artigo 97, §1º do CTN: (a) somente poderão incidir sobre os produtos estrangeiros os tributos que incidam nas operações internas com produtos similares, à exceção do Imposto de Importação; e (b) os tributos não podem ser cobrados em patamares superiores, direta ou indiretamente, daqueles que incidem nas operações internas.

Logo, qualquer isenção, alíquota ou base de cálculo reduzida que é aplicada para o produto nacional deve ser estendida ao produto estrangeiro originado de outro país signatário do Gatt e, por natural extensão, é vedado conceder qualquer alíquota ou base de cálculo mais gravosa ao produto internacional (já que isso culminaria em uma carga tributária superior à do produto nacional).

Só que a base de cálculo do ICMS-Importação é substancialmente superior daquela prevista para o ICMS das operações internas, em razão da exigência de inclusão dos tributos aduaneiros. Essa previsão legal é ilegítima no tocante às importações originadas de países signatários do Gatt, já que conduz a uma carga tributária superior àquela apresentada na aquisição interna. Além disso, eventuais benefícios fiscais das operações internas devem ser aplicados, também, para as operações de importação, como inclusive já definido nas Súmulas STJ nº 20 e 71 e STF nº 575.

Esse último ponto, apesar de pacificado, merece dois comentários adicionais: (a) no caso de existirem cargas tributárias distintas a depender da origem da mercadoria (v.g. operações internas e interestaduais), deve-se sempre adotar como paradigma comparativo a menor dentre as vigentes (exatamente para prevenir uma competição desleal), sendo ilegítimas previsões como as editadas pelo Estado de Minas Gerais de que deve ser aplicado o pior tratamento entre ambos (artigo 527 do RICMS/MG); e (b) qualquer benefício fiscal deve ser estendido, ainda que apenas de diferimento.

Se onde há vontade, há caminho, avançamos a passos largos na elucidação das controvérsias relacionadas ao ICMS-Importação nos últimos anos, mas ainda muito há que se andar.

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